domingo, 30 de outubro de 2011

Preciso lembrar que eu existo

Um grupo de 14 usuários do CREAS Pop de Pelotas (na foto) assistiram, quinta 27 de outubro, a um clipe com a música "Sentado à beira do caminho". Cada um recebeu dois versos num papel e disse em voz alta sua opinião sobre essa letra de Erasmo e Roberto Carlos, associando-os com suas próprias vivências.

O desânimo de que fala a música foi visto como uma angústia antiga do personagem, mas que não por isso deveria levar à passividade. Segundo os comentários dos presentes, é melhor confiar na esperança, nunca desistir, não perder tempo, ir atrás do que se quer.

Houve acordo em que acabar logo com isto não significa matar ou morrer, mas sim recuperar a própria existência, talvez perdida, talvez nunca conhecida (lembrar que eu existo).

O heterogêneo grupo participante - que é parte dos 50 usuários que vêm ao centro com mais frequência - são em maioria homens (90%), metade afrodescendentes e de diversos níveis educacionais (desde o analfabetismo até o ensino médio incompleto). Veja abaixo a letra, o clipe e os comentários.

Eu não posso mais ficar aqui a esperar
que um dia, de repente, você volte para mim
[É preciso correr atrás, não perder tempo, tomar uma atitude]

Vejo caminhões e carros apressados a passar por mim,
estou sentado à beira de um caminho que não tem mais fim
[Morar na rua, cuidando carros, se vê um caminho sem esperança, uma busca sem fim, não se vê o fim nem o rumo]

Meu olhar se perde na poeira dessa estrada triste,
onde a tristeza e a saudade de você ainda existe
[Ele perde alguém e sente saudade. Lembrança da poeira no Estradão]

Esse sol que queima no meu rosto um resto de esperança
de ao menos ver de perto o seu olhar, que eu trago na lembrança
[Tem que ter sempre esperança, nunca desistir. Sempre tem uma luz no fim do túnel, a cada nascer do sol tem uma esperança]

Preciso acabar logo com isto,
preciso lembrar que eu existo

[Até quando verei meu povo se perdendo, não se valorizando?
Quando olho pra mim também penso se vale a pena]

Vem a chuva, molha o meu rosto e então eu choro tanto,
minhas lágrimas e os pingos dessa chuva se confundem com meu pranto.
[Saudade, tristeza. A chuva é como as lágrimas de Deus]

Olho pra mim mesmo, me procuro e não encontro nada,
sou um pobre resto de esperança à beira de uma estrada.
[Procurando um ideal, mas só acha depressão.
Tenta se achar e não consegue, anda perdido]

Preciso acabar logo com isto,
preciso lembrar que eu existo.

[Precisa acabar com o sofrimento. Uma forma é buscando a Deus]

Carros, caminhões, poeira, estrada, tudo se confunde em minha mente,
minha sombra me acompanha e vê que eu estou morrendo lentamente.
[A sombra é o reflexo do personagem. Depende dele morrer ou não]

Só você não vê que eu não posso mais ficar aqui sozinho,
esperando a vida inteira por você, sentado à beira do caminho.
[Magoado, angustiado, desistiu ou está pensando em desistir]

Preciso acabar logo com isto,
preciso lembrar que eu existo.

[Procurar novos caminhos]


Manhã de sábado

O escritor Manoel Soares Magalhães publicou no dia 25 de junho deste ano a seguinte crônica em seu portal de notícias CultiveLer.com (veja o post).

Havia pressa no andar. O cão, desses sem grife, disparava pela calçada levando à boca um pedaço de pão. Às vezes parava, coçava-se desesperadamente, olhando em derredor, para logo prosseguir a corrida.

Atravessou a rua, quase sendo atropelado por um carro. Assustado, apressou a corrida, entrando na Praça Coronel Pedro Osório, indo em direção à Fonte das Nereidas. Ultrapassou o redondo da praça, pegando a alameda que conduz à esquina que dá para o Teatro Guarany. Num salto atravessou a rua, pegando a calçada do teatro.

Logo estava à frente do velho Guarany, onde havia alguém deitado sob um velho e surrado edredom. Sentou-se, largando o pedaço de pão. Espantou mais algumas pulgas, olhando à volta. Encostou o focinho no corpo do morador de rua, fechando os olhos. O pedaço de pão ficou ao seu alcance.

A manhã fria, sem sol, deixava o ambiente ainda mais triste e desolado. Sempre que alguém se aproximava o vira-lata abria levemente os olhos, atento a tudo. Cumpria com zelo sua função de vigilante.

A pessoa sob o edredom mexeu-se. O cão grunhiu levemente, erguendo-se, olhos atentos aos movimentos do dono, cutucando-o com o focinho duas ou três vezes. Como o dono se manteve quieto, o cão tornou a deitar-se, não antes de espantar mais algumas pulgas.

Um gato miou no outro lado da rua, enfiando-se no porão de um casarão. O vira-lata ergueu a cabeça, ladrando baixo, mais por hábito do que por não gostar de felinos. O porteiro do teatro apareceu à porta, erguendo a gola da japona. Olhou o mendigo, balançando a cabeça. Tornou a entrar, fechando a porta atrás de si.

O morador de rua tornou a se mexer, afastando o edredom que lhe cobria a cabeça. Era um negro de cabeça raspada, velho. O cão grunhiu outra vez, aproximando-se das pernas do dono, o qual se encolheu, abraçando-o. Outro cão aproximou-se. Era grande, peludo e aparentemente velho. Seu pelo estava embarrado. Uma coleira de couro pendia em direção ao chão.

Parou numa distância de dois metros do morador de rua. O vira-lata ergueu a cabeça, mostrando os dentes ao recém-chegado. Dentes grandes e amarelos. Os olhos faiscaram.

— Calado, Pimenta — gemeu o dono.

Pimenta, porém, não estava satisfeito com a chegada de um rival. Pôs-se de pé, arreganhando os dentes, através dos quais a baba da raiva escorreu. Incontinente, abocanhou o pedaço de pão, olhando firmemente o intruso, que, pacientemente, sentou-se na calçada, limitando-se a olhar o pequeno e feroz vira-lata.

— Me deixa dormir, Pimenta! — tornou o dono, mexendo-se sob o edredom.

O cão, todavia, se mantinha rosnando, olhando de soslaio o cachorro invasor, que, displicente, resolveu erguer-se. Espantou suas pulgas e, indiferente, foi-se calçada afora, sem olhar para trás. Pimenta, por sua vez, não largou o pedaço de pão. Deitou-se outra vez, mas o fez com a sua e a comida do dono firmemente presa à sua boca.

Fechou os olhos. Ambos permaneceram quietos, indiferentes à vida que acontecia à volta. O outro cachorro seguiu até a esquina, parando. Olhou na direção do vira-lata. Lambeu-se, coçou-se, e dobrou a esquina. Longe o ruído de uma sirene quebrou o silêncio da manhã de sábado.
Fotos: F. A. Vidal (1) e M. Magalhães (2)

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Alguém que esteja sempre com você

Não estou disposto a esquecer seu rosto de vez
e acho que é tão normal.
Dizem que sou louco por eu ter um gosto assim
gostar de quem não gosta de mim.

Jogue suas mãos para o céu e agradeça se acaso tiver
alguém que você gostaria que estivesse sempre com você
na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê.

sábado, 15 de outubro de 2011

Sobre mendigos, revoluções e sapatos

Um sujeito, desses que bate na casa da gente pedindo se tem alguma coisinha pra dar, abordou-me no portão de entrada. Não cheirava a trago, nem parecia dopado. Sóbrio e direto em sua súplica. Qualquer roupa, casaco ou sapato servia. Estava todo esfarrapado e com frio. Mostrou a metade do pé pra fora dos guides.

Tive dó. Não foi culpa social ou religiosa. Lembrei do velho sapato que aposentei no inverno passado, guerrilheiro refugiado na sapateira. Couro marrom. Todo desbotado, desgastado e outros qualificativos batidos pelo uso. Ao menos estava em melhores condições que o desbeiçado pisante do rapaz. Deus que me perdoe, comparar meus pertences aos do mendigo. Mendigo, pedinte, reservista do exército de mão de obra... Sei lá como chamar em bom politiquês quem pede de porta em porta. Prometi dar uma olhada. Dois lances de escada e julguei que era o passo certo a dar. Por que ficaria com um calçado sem uso, havendo um necessitado lá fora? Coloquei numa sacola de súper. De brinde, um blusão cheio de bolinhas que aguardava a limpeza com prestobarba.

Pegou a doação, espiou, agradeceu e seguiu buzinando o porteiro dos meus vizinhos. Como assim? Não ia calçar ali mesmo? É impermeável sabe, moço? Tá chovendo, né? Não disse nada. Aquilo me corroía. Pior que não sei fazer caridade desde meu socialismo utópico universitário, morando com a mãe. Afinal, é papel do governo acabar com as desigualdades ou que enfrente a luta armada.

Estava ressabiado com tamanha ingratidão. Esperava nada menos que uma reação eufórica do sujeito. Resolvi manter a calma e o controle. Aquilo não me pertencia mais. Tentei olhar a cena com lirismo poético. Significaria uma sobrevida. Seguiria passeando pelas ruas de Satolep nos pés de um andarilho solitário.

Foi então que saquei. Era seu uniforme. Só podia ser. Ele usava aquela roupa rasgada pra sensibilizar a classe dominante. E se tiver uma comida, emendou, também aceitava.

Ah, não, tchê pode parar. Que negócio é esse? Já dei o meu melhor sapato e um blusão praticamente novo. O.k., não foi bem assim que eu disse, mas resmunguei algo. Uma ideia veio à cabeça enquanto eu subia a escada de volta. Esse louco vai botar o meu sapato fora. Vai ver não gostou. E se pedisse de volta? Dissesse que o tinha prometido a um parente? Não. Nunca menti direito. Escorregaria em algum detalhe. Precisava conformar-me com o destino incerto do calçado. É o fetiche da mercadoria. Fecha os olhos da gente. Impressionante o quanto me agarrei àquele par andante. Supermacio. Por que não calçava logo? Fazia o quê? Uma acumulação primitiva de calçados?

Voltei com um pacote de polenta e a cara mais amarrada do mundo. Ele não estava mais lá. Caminhava em direção à Donja, carregando um saco de ráfia cheio da caridade alheia. Forcei a vista o que pude e ao longe enxerguei um dedão, ainda de fora.

Um camarada do tempo da faculdade dizia que não se deve dar esmola ou fazer assistencialismo pois atrasava a revolução! Foi o mesmo que mais tarde falou que a única revolução que desejava fazer era em sua conta bancária. Os pobres sempre estarão conosco. Será?
Márcio Ezequiel