
Nisso, ouvi gritos e vi um mendigo sendo expulso pelo portão. Nós conhecíamos todos os que diariamente batiam nas portas pedindo ajuda, e este era um que chamávamos de Filósofo: ele mereceu o apelido porque lia muito e costumava comentar os artigos da nossa revista. *
Com sua longa barba e roupas esfarrapadas, o Filósofo caiu na calçada, sem se machucar, mas estava alterado e se sentia ferido em sua dignidade. Saímos caminhando e eu tentava acalmá-lo, dizendo que era Natal e não valia a pena se incomodar. Ele falava da sua humilhação em ser tratado como um bicho, principalmente pelo seu aspecto e porque mendigava.
Chegamos perto da minha casa, já mais calmo ele, e eu perguntei se ele queria comer alguma coisa. Disse que não, mas ele é que ia me convidar.
Sem esperar a resposta, tirou de um dos sacos uma garrafa plástica das grandes, sem gargalo, engordurada por fora, cheia de comida que ele havia recolhido das lixeiras da rua: restos de peixe, de torta, de arroz, pão, tomates.
Sentamos no meio-fio para a nossa refeição. Usando um pão como colher, o Filósofo me ofereceu a primeira porção. Não sei que cara fiz, mas ele disse:
— Não se preocupe, padre, é comida fresca. Recém tirei do lixo.
Fiz um esforço e engoli aquele primeiro pedaço, que foi o mais difícil. O que mais me desagradou foi perceber, com a língua, caroços de azeitona deixados por alguém naquelas sobras. No final, o Filósofo me agradeceu a companhia no almoço e disse:
— O senhor não tem ideia como é bom se sentir acompanhado.
Eu também lhe agradeci pela companhia, mas o que ele nunca soube é que eu agradecia muito mais por ter sentido a profundidade daquele Natal: o fato de que o Filho de Deus vem compartilhar nossa humanidade, nascer entre nós para fazer-se como nós, sem se envergonhar da nossa condição humana.
Assim como aquele mendigo, nós humanos podemos dizer com alegria, ao sentir em cada Natal o Filho de Deus junto de nós:
— Vocês não têm ideia como é bom se sentir acompanhado!
* Revista Mensaje, publicação mensal dos jesuítas
Foto: Ronaldo Mitt (Flickr)
Um comentário:
Bonito texto: questionador, "mexedor", rsrs, do coração da gente!
Visitarei o blog _ que está ótimo! _ mais seguido!
Abr,
Tê!
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