domingo, 30 de outubro de 2011

Manhã de sábado

O escritor Manoel Soares Magalhães publicou no dia 25 de junho deste ano a seguinte crônica em seu portal de notícias CultiveLer.com (veja o post).

Havia pressa no andar. O cão, desses sem grife, disparava pela calçada levando à boca um pedaço de pão. Às vezes parava, coçava-se desesperadamente, olhando em derredor, para logo prosseguir a corrida.

Atravessou a rua, quase sendo atropelado por um carro. Assustado, apressou a corrida, entrando na Praça Coronel Pedro Osório, indo em direção à Fonte das Nereidas. Ultrapassou o redondo da praça, pegando a alameda que conduz à esquina que dá para o Teatro Guarany. Num salto atravessou a rua, pegando a calçada do teatro.

Logo estava à frente do velho Guarany, onde havia alguém deitado sob um velho e surrado edredom. Sentou-se, largando o pedaço de pão. Espantou mais algumas pulgas, olhando à volta. Encostou o focinho no corpo do morador de rua, fechando os olhos. O pedaço de pão ficou ao seu alcance.

A manhã fria, sem sol, deixava o ambiente ainda mais triste e desolado. Sempre que alguém se aproximava o vira-lata abria levemente os olhos, atento a tudo. Cumpria com zelo sua função de vigilante.

A pessoa sob o edredom mexeu-se. O cão grunhiu levemente, erguendo-se, olhos atentos aos movimentos do dono, cutucando-o com o focinho duas ou três vezes. Como o dono se manteve quieto, o cão tornou a deitar-se, não antes de espantar mais algumas pulgas.

Um gato miou no outro lado da rua, enfiando-se no porão de um casarão. O vira-lata ergueu a cabeça, ladrando baixo, mais por hábito do que por não gostar de felinos. O porteiro do teatro apareceu à porta, erguendo a gola da japona. Olhou o mendigo, balançando a cabeça. Tornou a entrar, fechando a porta atrás de si.

O morador de rua tornou a se mexer, afastando o edredom que lhe cobria a cabeça. Era um negro de cabeça raspada, velho. O cão grunhiu outra vez, aproximando-se das pernas do dono, o qual se encolheu, abraçando-o. Outro cão aproximou-se. Era grande, peludo e aparentemente velho. Seu pelo estava embarrado. Uma coleira de couro pendia em direção ao chão.

Parou numa distância de dois metros do morador de rua. O vira-lata ergueu a cabeça, mostrando os dentes ao recém-chegado. Dentes grandes e amarelos. Os olhos faiscaram.

— Calado, Pimenta — gemeu o dono.

Pimenta, porém, não estava satisfeito com a chegada de um rival. Pôs-se de pé, arreganhando os dentes, através dos quais a baba da raiva escorreu. Incontinente, abocanhou o pedaço de pão, olhando firmemente o intruso, que, pacientemente, sentou-se na calçada, limitando-se a olhar o pequeno e feroz vira-lata.

— Me deixa dormir, Pimenta! — tornou o dono, mexendo-se sob o edredom.

O cão, todavia, se mantinha rosnando, olhando de soslaio o cachorro invasor, que, displicente, resolveu erguer-se. Espantou suas pulgas e, indiferente, foi-se calçada afora, sem olhar para trás. Pimenta, por sua vez, não largou o pedaço de pão. Deitou-se outra vez, mas o fez com a sua e a comida do dono firmemente presa à sua boca.

Fechou os olhos. Ambos permaneceram quietos, indiferentes à vida que acontecia à volta. O outro cachorro seguiu até a esquina, parando. Olhou na direção do vira-lata. Lambeu-se, coçou-se, e dobrou a esquina. Longe o ruído de uma sirene quebrou o silêncio da manhã de sábado.
Fotos: F. A. Vidal (1) e M. Magalhães (2)

Nenhum comentário: