L. F. Tófoli |
O projeto aumenta a repressão ao tráfico, distingue a internação "compulsória" (por ordem judicial) e a "involuntária" (por ordem médica) e inclui as fazendas terapêuticas (por internação voluntária) como medidas a serem aplicadas em caso de dependência química.
Veja também artigo do deputado Terra PL ajuda famílias a enfrentar o flagelo das drogas e o Parecer do CFP sobre o projeto citado.
Em suas manifestações públicas em relação ao projeto de drogas que redigiu, o deputado Osmar Terra (PMDB-RS), médico e ex-secretário de Saúde de seu estado, tem sido profícuo ao citar dados. Em uma declaração ao jornal O Globo, ao criticar o viés “ideológico” daqueles que objetam contra seu projeto, não hesitou em dizer que “cada parágrafo” dele seria “baseado em evidências científicas”.
Dados científicos são frequentemente incompletos, sujeitos a contingências metodológicas e difíceis de interpretar. A própria construção do que é uma evidência científica e a decisão de nortear políticas a partir delas são também opções ideológicas, embora os médicos não se deem conta disso. No século XXI já parece ser bastante claro que não existe Ciência absolutamente neutra, e que é na análise de estudos que apontam posições e resultados contraditórios que poderemos nos aproximar da realidade. Esse é, por excelência, o caminho possível no campo das políticas públicas sobre drogas.
O PL 7663/2010 de Osmar Terra – transformado no substitutivo do deputado Givaldo Carimbão (PSB-AL) – está longe de ser uma peça legislativa baseada em dados científicos inquebrantáveis.
Para começar, o projeto parte da concepção de que a dependência química é uma doença cerebral que leva a alterações permanentes causadas pelas drogas, uma doença para a qual não existe cura e para qual o único tratamento possível é a abstinência. Essa premissa é desafiada na literatura científica recente, e certamente não pode ser tomada como uma verdade para todos os casos. Como explicar, por exemplo, os vícios que não envolvem substância psicoativa, como o jogo patológico? Ainda que essa concepção da dependência fosse assumida como correta, caberia examinar se o projeto de lei, a fim de amenizar o terrível sofrimento social causado pelas drogas, está suficientemente assentado em evidências científicas.
Vejamos aqui algumas que foram ignoradas no processo de elaboração do PL.
Para começar, o projeto parte da concepção de que a dependência química é uma doença cerebral que leva a alterações permanentes causadas pelas drogas, uma doença para a qual não existe cura e para qual o único tratamento possível é a abstinência. Essa premissa é desafiada na literatura científica recente, e certamente não pode ser tomada como uma verdade para todos os casos. Como explicar, por exemplo, os vícios que não envolvem substância psicoativa, como o jogo patológico? Ainda que essa concepção da dependência fosse assumida como correta, caberia examinar se o projeto de lei, a fim de amenizar o terrível sofrimento social causado pelas drogas, está suficientemente assentado em evidências científicas.
Vejamos aqui algumas que foram ignoradas no processo de elaboração do PL.
Em SP, a internação de dependentes fica travada pela imensa procura (v. notícia) |
- Em primeiro lugar, o projeto faz uma grande trapalhada ao emaranhar dependência química com uso de drogas. A literatura mostra claramente que o contingente de dependentes das drogas ilegais mais comuns no Brasil é algumas vezes menor do que o número total de usuários. Políticas e eventuais medidas para estes grupos devem ser distintas. Ao misturar os conceitos, o projeto dá a chance, por exemplo, de que um usuário leve de maconha seja submetido a uma versão contemporânea da internação forçada apresentada no filme Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky.
- Outra confusão feita pelo PL está na proposta de uma classificação das drogas por seu potencial de gerar dependência. A ideia é baseada em uma classificação feita pelo Reino Unido e não é delineada no texto legislativo, ficando para ser decidida posteriormente. Atualmente há críticas à própria classificação britânica, e um famoso estudo publicado na respeitável revista científica Lancet colocou em cheque a própria noção de que seriam as drogas ilegais as mais daninhas para o indivíduo e a sociedade [v. referência Álcool é mais nocivo que LSD].
- Não bastasse isso, o projeto ainda aumenta a pena para tráfico de drogas, sem distinguir usuários de traficantes de forma objetiva. Considerando o desproporcional aumento de apenados por tráfico no Brasil dos últimos anos – muitos deles com um perfil muito mais próximo de usuários do que de traficantes perigosos – tomar uma medida como essa sem determinar critérios objetivos de distinção é bastante temerário, ainda mais se considerarmos que o próprio endurecimento legislativo pode ser confrontado. Por exemplo, na Europa, o consumo por adolescentes é menor em países onde há menores restrições para o porte e uso pessoal de drogas.
A resposta que o deputado Osmar Terra tem dado – que é o de que os “aviõezinhos” iriam carregar somente a quantidade permitida para porte e que “ninguém mais vai ser preso” – não é condizente com os dados do Observatório Europeu de Drogas e Dependência [v. referência 2], que mostra que em países que se tornaram menos rigorosos com o uso e porte de drogas, as prisões por tráfico não diminuíram.O autor do projeto já disse que as ações de consultório na rua – proposto como uma das alternativas às duas únicas formas de tratamento presentes no PL, a internação compulsória e o acolhimento voluntário em comunidades terapêuticas – não têm evidência de efetividade.
Pode ser que o enfoque das provas científicas feito pelo deputado revele também um viés ideológico, já que o mais respeitável repositório de Medicina baseada em evidências, a Biblioteca Cochrane, indica que não há provas suficientes [v. referência 3] para apoiar o modelo das comunidades terapêuticas no tratamento da dependência química. Além disso, segundo afirma Gilberto Gerra, do Escritório das Nações Unidas para o Crime e Drogas [v. referência 4], também não há evidências que justifiquem o uso de internações forçadas a não ser em situações críticas de risco de vida e quando outras tentativas não tiverem dado certo – o que, aliás, já determina a atual lei brasileira que dispõe sobre os tipos de internação psiquiátrica.
Há muitos outros pontos problemáticos – como o financiamento de entidades religiosas, o cadastro de usuários de drogas, as formas estranhas de regulação de um sistema de tratamento paralelo ao Sistema Único de Saúde, só para citar alguns. Num projeto tão questionado – rejeitado ou fortemente criticado por notas técnicas do Governo e por ONGs, por pareceres de entidades como a Fundação Oswaldo Cruz, o Instituto dos Advogados Brasileiros e o Conselho Federal de Psicologia, e até pela opinião de políticos de posições opostas na arena eleitoral como o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) – a presença de evidências científicas que contradigam seus parágrafos deve ser mais um elemento para, no mínimo, refrear o regime urgente em que o projeto tramita e, no limite, sepultá-lo em definitivo na busca de respostas mais consensuais.
Mas, no Brasil, onde “política baseada em evidências” se confunde com “evidências baseadas em política” e a mídia – com honrosas exceções – ajuda mais a embaralhar e estigmatizar a questão do que estimular o debate qualificado (v. artigo A Imprensa Entorpecida, por L. F. Tófoli), é bem possível que as evidências sejam soterradas pela urgência política vinculada ao atual projeto em tramitação. Aguardemos para ver o que os legisladores brasileiros têm a responder diante deste projeto que representa um conjunto de retrocessos míopes à pesquisa científica e às reais e sérias demandas de cuidados que a questão do uso problemático de substâncias impõe a este país.
Em MG, usuário menor poderá ser internado por ordem judicial (v. notícia) |
3 comentários:
Sou a favor da lei ou emenda do deputado Osmar Terra.
Tenho 53 anos desde os 18 com remedios e psicoterapia por uma ezquizofrenia, ja fui internado 2 vezes a muitos anos e me tratei no CAPS II tambem. Hoje sou vice presidente da AUSSMPE, Associaçao dos Usuarios dos Serviços de Saude Mental de Pelotas. Participo do programa GENTE COMO A GENTE da RADIO COMUNIDADE, FM 104.5 sabados das 1 e 30horas ate as 3 horas.Participo tambem das feiras da avenida Bento Gonçalves os domingos do CAPS Escola, dos atos inerentes a minha funçao na AUSSMPE,...Tenho 3 filhos e minha esposa, sou aposentado,...
Tenho 59 anos,aposentado ex dependente quimico,com transtornos mentais por conta dos vicios,trato-me no caps zona norte de Pelotas e sou presidente da aussmpe-associação dos usuarios dos serviços de saude mental de Pelotas e participante do programa gente como a gente dos caps de Pelotas na radiocom.org.br.
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