segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

De cães e mendigos (crônica)

O escritor pelotense Manoel Soares Magalhães publicou esta crônica na terça-feira 6 de julho de 2010 (leia os comentários no blog Amigos de Pelotas).

Como gosto muito de caminhar - de preferência muito cedo -, percebo que os moradores de rua, nos últimos anos, aumentaram consideravelmente em Pelotas. Amanhecem sob as marquises, nos vãos das portas ainda não gradeadas, via de regra na companhia de seus guardiões, os cachorros.

Chega a ser comovente a forma como velam o sono dos mendigos, de todos os sexos e idades. À frente do Campo do Esporte Clube Pelotas, na Avenida Bento Gonçalves, abaixo do portão central, cinco ou seis moradores de ruas se aninham, aquecendo-se como podem, buscando no sono a libertação de suas amarguras cotidianas. Em derredor os cachorros, de todos os tamanhos, vigilantes, dormindo ou catando pulgas.

Por isso sou obrigado a reconhecer que são, realmente, os melhores amigos do homem, pois aceitam a miséria que lhes é imposta para permanecer na companhia de seus donos, que não pode lhes dar nada, exceto carinho. Às vezes paro para observar-lhes o olhar, do qual pinga mel de tanta veneração que têm pelas almas errantes que, dia após dia, seguem pelas ruas da cidade na dolorosa faina de sobreviver num mundo cada vez mais duro e excludente.

Dias atrás, tomando café no Aquário, vi adentrar um desses anônimos que vagabundeiam pela cidade, dirigindo-se à caixa. Enfiou esquálida mão no bolso, do qual emergiu amassadas notas. Pagou o direito de tomar um cafezinho como todo mundo, acotovelando-se no balcão.

Claro que se abriu ao seu redor um clarão, pois seu cheiro, digamos, não era dos mais atraentes. Chegada sua vez, serviram-lhe o cafezinho. Em vez de tomar, pegou a xicrinha e, com desenvoltura, levou-a a rua. Foi em direção à Caixa Econômica, onde, sentado no chão, costas à parede, esperava seu companheiro, retinto negro de olhar esfaimado, com a perna direita enfaixada.

Estendeu-lhe a xícara, que foi pega por hesitante e trêmula mão. À volta, claro, quatro ou cinco cães, línguas de fora, esperando o desenrolar da história. O negro tomou o cafezinho lentamente, sorrindo satisfeito, entregando depois a xícara vazia ao seu companheiro de infortúnio, que girou sob os calcanhares e foi em direção ao Café.

Deixou a xícara no balcão e, tranquilo e sorridente, abandonou o recinto, dirigindo-se na direção do amigo, ajudando-o a erguer-se. Seguiram manquejando pela Sete de Setembro em direção à Anchieta. Os cães, alegres, seguiram-lhes os passos. Logo desapareceram na esquina.

Fiquei parado na porta do Café, aturdido diante do gesto de grandeza que presenciara. Segui depois em direção à Praça Coronel Pedro Osório com sensação de solidão, querendo, talvez, a companhia de um cão pulguento e sarnoso, e, de quebra, alguém com o coração generoso a seguir-me os passos, mesmo em demanda do abismo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Manoel, teu texto, assim espero, desperta a sensibildade de quem não percebe "gestos de grandeza" por parte de moradores de rua.

A vida tem me ensinado que é justamente o contrário...
E pensar naqueles jovens que realizaram "outros gestos" - nota "zero" em grandeza _ em relação a um episódio que não deve ser esquecido: o da cadela Preta, apelido carinhoso que só os que têm essa capacidade de grandeza, mencionada na tua crônica, são capazes de denominar.

Lindo texto, Manoel!
Abr, Tê!

Aline Crochemore Hillal disse...

Muito interessante texto!! Destaco o olhar sensível do autor...me fez lembrar das palavras finais da música "Sonho Impossível", do Chico Buarque "...e o mundo vai ver uma flor, brotar do impossível chão."